segunda-feira, março 07, 2005

A instrumentalização do útil

ou um regresso à crença na técnica, mas para algo mais…

Pode-se dizer que o ser humano é o ser mais desenvolvido tecnicamente: transformou o ambiente circundante em seu benefício, fazendo objectos que de algum modo lhe eram úteis – serviam para alguma coisa, outra que não eles próprios; fez com que estas utilidades evoluíssem, também à medida que se modificavam as suas necessidades (aliás, é um processo mútuo e circular: os objectos colmatam velhas necessidades e, indirectamente, acabam por contribuir para a criação de novas necessidades), transformando essas utilidades no sentido de uma maior eficácia apoiada por uma incrementada complexidade; tudo isto deu um salto de gigante aquando do surgimento da ciência, que, aliada a este espírito, cedo se metamorfoseou em tecno-ciência.
Tudo isto para quê? Eis uma pergunta que se não está inscrita a néon em todas as grandes ruas das cidades do mundo é porque vivemos numa aparente falta de resposta para ela, o que por certo nos constrangeria – nós, que estamos permanentemente absorvidos no grande engenho que criámos. Essa resposta pode não surgir evidente, mas a sua urgência criou ao longo dos anos prolixa reflexão. Torneando a descrição morosa de uma história da mesma, para a qual não estaria habilitado, limitar-me-ei a apresentar mais uma proposta (desconhecendo se é original ou não, o que pouco importa), aproveitando a liberdade especulativa que neste espaço é possível.
Ponto por ponto: 1) a tecnologia serviu e serve predominantemente para a satisfação das necessidades humanas mais imediatas, permitindo a sustentabilidade física com o menor esforço possível – claro que ela não serve somente para isso, pois, por exemplo, quando os irmãos Wright voaram 250m com o seu avião não pensaram decerto na sustentabilidade física do ser humano, contudo, foi por serem benéficos para essa sustentabilidade que os meios aéreos se desenvolveram; e se é certo que as guerras mundiais foram determinantes nesse desenvolvimento e que o belicismo em si também o é relativamente à tecnologia em geral, não é menos verdade que é em guerra que a sustentabilidade física está mais posta em causa e por isso é ai que ela mais se torna dinamizadora da investigação tecnológica; 2) este incremento da sustentabilidade física abre espaço a uma maior liberdade a outro nível, menos determinado pelo instinto de sobrevivência e verdadeiramente definidor do ser humano: a dimensão simbólica; 3) na dimensão simbólica podemos incluir todas as artes, todas as ciências e todas as outras áreas que podemos designar de espirituais (todavia, coloca-se o problema de nesta dimensão estarem incluídas actividades comprometidas estritamente com a sustentabilidade física do ser humano, como, por exemplo, algumas actividades científicas – isso apenas revela que é do potencial simbólico que advém a invenção das técnicas de sustentabilidade física, que estas nascem desse potencial: os irmão Wright não queriam directamente possibilitar viagens mais rápidas entre continentes, contudo, isso tornou-se possível, ou seja, eles utilizaram as suas capacidades simbólicas nesse feito que sobreviveu a um nível técnico devido aos seus benefícios para a sustentabilidade física, a chamada tecno-ciência vive neste âmbito misto: técnico e simbólico); 4) o técnico advém do simbólico, este é o primordial, pois possibilita o técnico e alimenta a sua liberdade nele; 5) hoje vivemos uma época em que existe um desajuste entre o alto nível de sustentabilidade física que alcançámos e um fraco aproveitamento desse benefício ao nível simbólico – este vive demasiado embrenhado na criação das garantias técnicas de sustentação física.Terminando, e reconhecendo que é um assunto cuja extensão exigível não é adaptável a este espaço e que, portanto, muito ficou por dizer, resta-me afirmar que o simbólico é representação, é presentificação do ausente (quer temporal quer espacial, o que permite a reprodução do cosmos no ser humano) e é relação analítica e sintética entre elementos infinitos que, por isso, permite atingir níveis de criatividade e revelação inimagináveis e cujas potencialidades dificilmente se antevêem. Por isso, parece que hoje ainda não agarramos o nosso futuro, apesar de levarmos às costas todo o passado.