terça-feira, outubro 12, 2004

nas margens da morte

Todas as teorias sobre o homem, todas as ciências ditas humanas, todos os discursos que retalham, aprofundam, esmiúçam, reconstroem, glorificam esta particularidade de sermos bípedes e termos linguagem e sentimentos que se fazem gestos e palavras. Toda esta capa que encobre o homem, sobre que bases se apoia? O que faz a sua coerência? Onde fica a vida que vivemos nos intervalos, no interior desses discursos? Há cisão entre o que pensamos e o que somos, há contaminação, há hipocrisia?
Não há, pelo menos, verdades absolutas.
Vem tudo isto a propósito de uma morte, da morte de um dos pensadores que mais tem influenciado certas correntes da filosofia e da cultura contemporâneas. Derrida não foi um pensador consensual, não o podia ser. Há mais filosofia para além da desconstrução, há outras formas (menos profundas, mais pragmáticas, com outros pontos de partida, …) de encarar o mundo e de o provocar. No entanto, e talvez isto se justifique por uma desmesurada deformação académica, o espírito que subjaz à desconstrução é-me bastante familiar. Não posso deixar de me identificar com ele, não posso deixar de sentir na pele o desprendimento de quem reconhece a volatilidade das construções sociais, políticas, estéticas, filosóficas, éticas, etc. Voláteis não pela ausência de força, não pela impossibilidade de gerirem e movimentarem o mundo – porque o fazem efectivamente, porque a bem ou a mal, assente nos discursos e nas acções existentes, o mundo funciona –, mas porque as suas bases se perdem numa origem incerta, numa história de difícil reconstrução. No fundo, o mundo-do-homem, tal como se manifesta hoje em dia, é um “acaso do destino”. E sem a aceitação deste paradoxo, deste “somos o que somos mas podíamos não ter sido”, desta debilidade que atravessa a desconstrução, não é sequer possível tentar compreendê-la. Porque nela há uma silenciosa desordem – e um desejo utópico de redenção dessa desordem.
Toda a redenção é individual, singular, surge do reconhecimento da injustiça das situações mundanas, da nossa injustiça, da injustiça dos outros. Não há pensamento sem redenção. Mas ao contrário da redenção marxista, versão ideológica, histórica e material da salvação cristã, a redenção da utopia desconstrutivista assume-se na singularidade de cada um de nós, sob a forma de sussurro. Caso contrário, gritada aos nossos ouvidos, imposta à força, publicitada como a maior de todas as filosofias, degenera em academismo, torna-se um punhado de frases feitas, torna-se palavra de ordem e não de desordem (da boa desordem, é claro, daquela que nos corrói por dentro e impossibilita o comodismo). No fundo, fora de todas as piadas e brincadeiras a que se presta a desconstrução, há na sua simplicidade de princípios uma abrangência de valor incalculável: se somos filhos desta teia de discursos que nos tece desde há séculos, tentemos desfiá-la; se somos filhos da fragilidade, se estamos sempre à procura de nós próprios, tentemos pelo menos reconhecer nos pequenos gestos a marca daquilo que somos. Isto não dá felicidade, não dá reconhecimento mediático nem grandes conquistas políticas. Dá talvez uma ligeira inquietação, e a certeza de que nas dobras da vida ainda faz sentido pensar.