quarta-feira, dezembro 22, 2004

a natureza

É hoje comum conceber que o ser humano fez emergir a cultura de um modo tão pulverizado que a chamada Natureza ficou para trás, ou melhor, ficou submersa por baixo dos tentáculos com que o Homem foi dominando o mundo. Se primeiro viveu temeroso da Natureza, respeitando os seus ciclos e ansiando as suas bonanças, com a modernidade, o surgimento da ciência e principalmente da tecno-ciência, o ser humano predispôs-se ao seu domínio, manipulando-a em seu benefício, evitando os seus males e instrumentalizando os seus elementos; tanto Bacon como Descartes já o preconizavam, o que ao Homem – ser que, antes de mais, sempre quis sobreviver o melhor e o mais duradouramente possível – pareceu um projecto encantador e com o qual tudo tinha a ganhar. E assim foi, o Homem progressivamente foi superando os limites impostos pela Natureza, ao ponto de hoje já nem precisar da cópula para nascer. Acontece que, segundo alguns pensadores contemporâneos, essa Natureza já não existe, supostamente perdeu-se por trás da artificialidade humana, que impôs a tudo a cultura, inclusivamente ao olhar do Homem sobre a tal Natureza, um olhar já cultural, que pretende preservar a raridade, que necessita assim de uma ecologia para ser pensada e protegida.
A defender esta posição temos pensadores como Malson, o qual nega simplesmente que o Homem alguma vez tenha sido Natureza, afirmando que o seu ser é e sempre foi um ser histórico, logo um ser cultural. Malson sustenta que a abertura que caracteriza o ser humano o distingue dos determinismos que a suposta Natureza imprime a todos os outros seres.
Sugere-se aqui uma inversão desta posição (eventualmente com muitos outros), colocando a hipótese de que o Homem nunca deixou de ser Natureza, que a dicotomia entre natural e cultural é tão ilusória como se alguém teimasse que respirar é uma função terrestre e fumar cigarros é uma prática alienígena. O Homem não é o único animal que transforma o que o rodeia com instrumentos que não são o seu corpo, que comunica, que se metamorfoseia, que se adapta, ou que cria estruturas anteriormente inexistentes. Claro que concordo que somos seres mais complexos, na medida em que fazemos grande parte destas coisas com uma maior complexidade, temos o pensamento, uma linguagem elaboradíssima, mais que qualquer outro ser construímos um mundo que não nos é dado, é adquirido, totalmente construído por nós e, acima de tudo, a nossa abertura ao futuro e à novidade é insuperável. Mas as peças que utilizamos na reelaboração do mundo, vamos buscá-las onde, ao planeta cultura? Tudo o que fazemos não estará em conformidade com o que nos rodeia, com a vida? Ela não será isso mesmo, a transformação em novo, a força em abertura permanente à recomposição da própria constituição ontológica? Não seremos, por assim dizer, a tecnologia de ponta da Natureza, expressão infeliz mas que permite uma melhor compreensão desta posição?
Em última análise, negando-se a dicotomia natureza/cultura, o próprio conceito de Natureza perde o seu sentido, pois se não há natural nem cultural , há simplesmente este modo de ser que, aparentemente, tem no Homem a sua dimensão reflexiva, o seu espelho formador do disforme, ao contrário dos espelhos de feira. Este é um reflexo débil, fragmentado, finito e limitado, mas também criador, simbólico e com pequenos vestígios de uma consciência que, na eterna ausência de Deus, talvez um dia salve o universo.