sexta-feira, novembro 19, 2004

passagens secretas

Quando criança, as incipientes construções que erguia na areia da praia durante o Verão eram invariavelmente constituídas por uma passagem qualquer, de preferência subterrânea, que eu considerava secreta. Ali algo invisível podia acontecer, qualquer coisa apenas conhecida por mim desenrolava-se junto à irrealidade, ao parcial, ao não acontecimento em comum, publicitado: condição da realidade, segundo alguns pensadores. Naquelas reentrâncias acontecia algo que só por mim era conhecido, a minha visão era a condição de existência daqueles lugares. Eu era um pequeno Deus, o que no campo da divindade vai dar ao mesmo: grande ou pequeno, eu era um Deus absoluto de algo, e no poder é que estava o ganho.
Extrapolando, existe, portanto, segundo a minha experiência e no desenrolar da mesma, o fascínio do secreto, do exclusivo, de um único dominável pela unilateralidade de um transcendente poiético do observado (assim produzido pela observação). Deste modo, mesmo reconhecendo a existência do desconhecido, coloco a hipótese de o Homem, em cada passo que dá no meio da luz, sugerir a si mesmo a obscuridade para lá dos limites onde vive. A própria noção de limite surge no lugar onde o Homem deixa de olhar, onde ele se abstém de ver, desviando a vista para uma evidência lateral, imaginando (vendo com outros olhos) imediatamente um desconhecido (construído com as peças do conhecido) lá onde deixou de insistir com a observação, com a procura, com a mão que agarra algo. Deste ponto de vista, o desconhecido, além da ausência de um certo conhecimento em potência, oculto (que não me atrevo a colocar em causa), resulta do desvio do olhar cognoscente que abre uma clareira onde o sujeito desviante pode colocar todas as combinações de elementos da realidade que desejar, formando uma passagem secreta, única, própria, um conhecido ocultado a tempo de se desconhecer em público, um buraco de um outro mundo que se alimenta indefinidamente do mundo solipsista do sujeito, até reificar-se como novo mundo (real) mediante a publicidade, o colocar em comum, comunicando a passagem, de modo a despontar como realidade. Entre o oculto e o ocultado encontramos o espaço estranho de onde a realidade emerge, ora de uma efectiva descoberta do novo, no caso do desvelamento do oculto, ora de uma produção do sujeito mediante a eleição de um nicho ocultado e configurado pelo próprio.