quinta-feira, setembro 09, 2004

Desordenando a oposição ordem/desordem

A desordem está implícita na ordem, no seu movimento interno, na permutabilidade imanente à sua estrutura. Por mais rígida que seja a construção ordenada, a sua aparente inflexibilidade não deixa de desenvolver em si elementos que a colocam em causa e ambicionam a sua desestruturação. Deste modo, parece-me incontornável o facto de a própria ordem conter em si a sua desordenação. Exemplos disso são os focos de resistência existentes dentro das sociedades totalitárias, considerando neste caso a estrutura sociedade. A própria democracia é um sistema ordenado que permite o diálogo entre elementos desordenadores, sendo assim um expoente máximo da inerência entre ordem e desordem. Como tal, Ricoeur considera democrático o “Estado que não se propõe eliminar os conflitos, mas se propõe inventar os procedimentos que permitem que eles se exprimam e se tornem negociáveis. O Estado de direito, neste sentido, é o Estado da livre discussão organizada” (Du Texte à L’Action, Paris, Éd. Du Seuil, 1986, pág. 404). Destaco dois elementos: 1) procedimentos, os quais são a dimensão ordenada e organizada da estrutura, e 2) conflitos, âmbito claramente desordenado, no qual prolifera a discussão e a construção cíclica do novo. Única ordem inquestionável: a possibilidade da desordem se manifestar, poder aparecer e desordenar, reordenando de novo. E é nesta aparente dialéctica que ambas se confundem. Surge um corpo que se modifica – arriscaria dizer autopoiéticamente –, que tem nessa capacidade a sua única possibilidade de sobrevivência, mas também de evolução, visto que só deste modo afundamentado (não considerando um fundamento a inquestionabilidade da possibilidade da desordem se manifestar, mas antes uma condição do próprio não fundadora mas permanentemente possibilitadora) se abre caminho à complexificação do sistema, complexificação esta que não significa necessariamente transformar o sistema num labirinto – embora possa suceder, principalmente numa primeira fase –, mas antes alargar a sua amplitude compreensiva e a sua mobilidade adaptativa, aprofundando de um modo cada vez mais claro a existência humana. Ordem/desordem? Dinamicamente há um corpo que mexe, que se expande, que toca inclusive onde não chega a sua carne, cujos momentos de estabilidade e aparente fundação fazem parte do mesmo estilhaço que insinua novas perspectivas, que apresenta novos olhares e ergue – tal como a Terra se move – um corpo que só um deus, se existir, reconhece.