segunda-feira, março 21, 2005

O dever e o amor

É extraordinário que o ser humano sinta uma certa aniquilação interior por ter praticado alguma acção que no seu entender não obedeceu ao seu dever. Isto terá fascinado Kant, que viu neste reconhecimento do dever a visão de um estrutura moral a priori e a existência de uma opção cuja recusa ou seguimento revelariam a liberdade humana, a possibilidade de escolha perante a qual os Homens se deparariam. Não menos fascinante é a acção que se insere nas boas acções não relevando do dever mas do amor.
Sem entrar em discussões sobre a validade ou não das conclusões de Kant ou da sua sobrevivência ou não em éticas contemporâneas que o recusam, para o primeiro caso, ou na consideração das chamadas filosofias da vida, para o segundo caso, apenas gostaria de distinguir estas duas situações: 1) a da culpa, em que o ser humano age porque sente um dever, cujo incumprimento o faz sofrer, fazendo com que aja evitando essa mesma dor, aquela que surge depois de não se cumprir o tal dever e à qual vulgarmente se chama sentimento de culpa; estando ou não certo, Kant chamou a atenção para um fenómeno de causa não evidente e que permite especulações sobre valores universais, ímpetos universalistas e a prioris cuja origem tanto poderá ser a antecedência absoluta do Outro, como um divino suposto do mesmo modo que Descartes o supôs patente na existência da ideia de infinito no homem, a qual, não advindo da experiência, adviria de Deus; 2) e aquela em que se age a favor de alguém, não porque se evita um sentimento de culpa que se sabe pontual (o qual neste caso não surgiria, pois esta não é uma situação que apresente dilemas éticos), mas porque se quer o bem do outro, porque se ama o outro, e a dor que se evita (sim, não é um amor puro, evita-se sempre qualquer coisa pior) não é a da culpa, mas a da falta, a ausência do outro ou do seu bem-estar, dependendo dos casos.
Na primeira situação age-se por dever. Na segunda, age-se por amor, querendo-se do outro que o seu ser se expanda e possa ser na medida em que inclui o ser do próprio e isso torna possível em ambos a criação de uma maior, mais complexa e profunda densidade existencial. A primeira situação parece surgir do exterior, não necessariamente transcendental, mas, por exemplo, social, cultural ou histórico. A segunda aparenta emergir do interior, como uma força vital, uma vontade de ser que invade o seu objecto e o leva consigo numa correlação de forças criadora. A primeira controla, impede; a segunda liberta, permite. Ambas vivem em nós, lugares de reunião e expansão, permanência e criação.