quinta-feira, dezembro 02, 2004

o espelho

“Para desencorajar o suicídio, o Governo (japonês) mandou colocar em diversas estações de metro espelhos em ambas as plataformas, esperando que os suicidas reconsiderem ao verem o seu reflexo num momento tão decisivo” (Jornal Público, 29/11/2004).

Assim, sem mais, o espelho pode salvar vidas humanas. Apesar de, considerando palavras de Pessoa, “envenenar a alma humana”, envenenamento reconhecível em doenças como a anorexia, o espelho, “num momento tão extremo”, pode arrancar à decisão derradeira indivíduos que, não suportando a vida, procuram o alívio de todas as dores e de todos os alívios.
Nesta situação emergem duas questões fundamentais: a da própria imagem e a do suicídio. A primeira é uma questão incontornável, principalmente nos dias de hoje. Da segunda já Camus dizia ser o maior problema filosófico.
Quanto à imagem que o espelho reflecte do indivíduo que para ele olha pode-se dizer que é o momento em que o próprio acede à imagem de si aproximada que os outros avistam permanentemente enquanto o podem observar, o que significa que quando alguém se observa ao espelho visiona uma evidência inalterável por completo (apenas em parte se pode alterar a própria figura física), uma imagem cujo controlo escapa continuamente na relação com os outros, os quais, por assim dizer, acedem a uma parte do indivíduo que o duplica na medida em que lhe foge. Neste sentido, a própruia imagem reflectida no espelho (que é apenas a imagem da imagem que os outros vêem, daí a duplicação) remete, no momento em que é observada pelo próprio, para o corpo enquanto fenómeno mundano, aparição no mundo, olhar visto por outro olhar.
No mundo vive-se, ou seja, caminha-se num campo de persistentes possibilidades em aberto, de elaboração de projectos, sentindo-se a esperança de ser futuro que alimenta um ser presente dinâmico e planeador. Ora, o suicida deixou de conceber a possibilidade, não perspectiva caminho, não vislumbra qualquer horizonte que lhe permita esperar, ter esperança, viver o futuro e aceitar o mundo.
Hipótese: o suicida, o ser sem esperança, o ser do impossível que pretende aniquilar o seu vazio, ao reconhecer a sua imagem no espelho, hesita, momento de suspensão onde tudo se joga; ele reconhece no espelho o seu estar-no-mundo e assim depara com um dispositivo que, indirectamente, o coloca perante a evidência de, enquanto imagem-no-mundo-com-os-outros, ser um ser de abertura e de hipotéticas possibilidades, ainda que suspensas. Aí, ele escolhe aniquilar-se na impossibilidade presente ou dá a si mesmo mais uma oportunidade de, na sua imagem, dar-se ao jogo das possibilidades.

1 Comments:

Blogger nrc said...

A propósito do espelho, da duplição do eu e da loucura que nos atrai quando descobrimos que aos olhos dos outros somos sempre um outro de nós mesmos, acabei de ler um livro de Luigi Pirandello, "Um, ninguém, cem mil". Como apreciador de Pessoa e dos mistérios da existência humana, acho que ias gostar.

9:03 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home